Medina e o X Factor

The X Factor é um reality show para a TV criado pelo empresário inglês Simon Cowell, descobridor de algumas superestrelas da música. A idéia básica do programa é achar cantores mais do que talentosos, que tenham também aquela coisa a mais, o tal Fator X.

Nas outras atividades, seja na medicina ou nos esportes, a premissa é a mesma. Caras como Roger Federer, Michael Jordan, Ayrton Senna e tantos outros atletas são exemplos de pessoas que além do talento aflorado possuem um carisma e uma aura divina, como se pertencessem ao Olimpo. E isso obviamente também rola no surf. Kelly Slater é o perfeito exemplo do cara X Factor. Desde muito cedo, aos 12 anos, já mostrava que seria diferenciado. Sua grandiosa carreira é reflexo direto de sua genialidade. Seres como eles, ficam para sempre em nossas memórias. Eles não morrem, transcendem! E Gabriel Medina surgiu com esta virtude.

Desde a entrada no profissionalismo até o título mundial em 2014, seu brilho foi intenso, tanto que arrumou um lugar no coração da juventude brasileira, tão magoada com os fracassos do futebol. Medina era o Neymar dando certo, tornando-se campeão. Com um empurrão do grupo Globo, aliado a seus resultados, conseguiu ultrapassar o lugar comum dos esportes menos midiáticos e chegou ao apogeu, virou celebridade. Tudo isso com apenas 21 anos.

Gabriel Medina no topo do surf mundial com o título de 2014. Foto:WSL/Divulgação

Gabriel Medina no topo do surf mundial com o título de 2014. Foto:WSL/Divulgação

Muita coisa mudou de lá para cá. Os compromissos no mar foram divididos com os dos estúdios. As férias surfando deram lugar a voltas de iate em Angra. Os (novos) amigos do peito não surfam, talvez nem se interessem por ondas. Tudo isso é uma questão pessoal e não requer opinião minha ou de qualquer outra pessoa. Mas nos meus recém feitos 50 anos, posso dizer que a vida é feita de ciclos, altos e baixos, e que a paixão por algo é capaz de te manter com os pés no chão. Tantas coisas pra fazer, lembrar, conhecer… tão de repente… Isso te leva ao céu, e ao inferno. Depois de tantas glórias, Medina está sofrendo por ser apenas “mais um” no Tour.

Vendo, de longe pela TV, o semblante tenso de Gabriel, por vezes penso que a cobrança em cima de seus ombros, por ele próprio e por todos em volta, está demasiadamente pesada. Olhando seu maior rival, o havaiano John John Florence, sempre sorrindo, perdendo ou ganhando, depois de um tubo ou após uma vaca, fica inevitável compará-los. Para mim, um está surfando forçado enquanto o outro é uma força natural de seu amor pelo mar.

Não acho que o tal Fator X desapareça assim, do nada. Penso que ele fica ali, no canto, quieto, esperando ser despertado. Fico imaginando se o surf perdeu um pouco a graça para ele, competindo com tantas outras diversões, algumas inimagináveis há 5 anos. Talvez esteja faltando aquele sentimento de acordar cedo, do lado da prancha nova, que passou a noite em cima da cama enquanto você dormiu no chão. Aquele desejo de pegar onda mesmo que o mar esteja horroroso só para acertar aquele aéreo que ficou em sua mente após o sonho noturno. Quem ama o surf, leva este amor para o resto da vida. Ele pode até descansar por um período, mas retorna. Que Gabriel Medina consiga relaxar e encontrar novamente o desejo de surfar apenas por surfar. Que seja menos robótico, competitivo e mais criativo e inconsequente. Se tivesse que dar-lhe um conselho, seria esse: “Cara, aproveite sua idade, seu momento e se divirta na água como se fosse um grommett. Surfe por você e por mais ninguém.”

O tempo voa, os problemas aparecem e a responsabilidade só aumenta. Nesta má fase que não acaba, pode estar faltando prancha, técnico, isso ou aquilo, mas creio que o que realmente não aparece é a alma. Prefiro ver o talentoso Medina se divertindo numa vala em Maresias do que se matando para passar uma bateria. Encontre o espírito e terá o fator de desequilíbrio. Este é o X da questão.

Gabriel é talento puro. Falta tranquilidade e confiança  para voltar a brilhar. Foto: WSL/Divulgação

Gabriel é talento puro. Falta tranquilidade e confiança para voltar a brilhar. Foto: WSL/Divulgação

Hors Concours

“1: adjetivo e substantivo de dois gêneros e dois números relativo a ou pessoa que não pode participar de um concurso por já ter sido laureada, por ser membro do júri ou por ser tida como muito superior aos demais competidores.” Esta é a definição do título deste texto e que serve para descrever John John Florence no evento de Margaret River, em ondas que alguns julgam chatas mas que foram palco, nos últimos 3 anos, de uma dos melhores sessões de surf competicão do Circuito Mundial. Ondas pesadas, selvagens, de juice havaiano onde brilharam os três vencedores e surfistas do power surf: Michel Bourez, Sebastien Zietz e Florence.

Acompanho o surf competição internacional desde 1982, quando assisti no Arpoador, o Waimea 5000. De lá para cá, foram muitas viagens, fitas de VHS para decupar, milhares de horas na internet e não me lembro de ver alguém tão acima dos outros como o havaiano esteve semana passada. Mesmo o nosso esporte dependendo da natureza, o que torna alguns resultados improváveis, dessa vez nada parecia deter (e não deteu) o ímpeto e talento do atual campeão do mundo. Sua superioridade beirou o ridículo, nesse caso para os outros competidores. Jordy Smith e Bourez, conhecidos pela facilidade em lidar com ondas maiores, pareciam grommets perto da velocidade e controle de JJF. Desde o momento em que os Top desfilaram pelo Main Break em vagas de até 15 pés, ficou claro que a galera brigaria pelo vice.

Impressionante a forma como John John Florence atacaou a onda de Margaret River. Foto : WSL/ Matt Dunbar

Impressionante a forma como John John Florence atacou a onda de Margaret River. Foto : WSL/ Matt Dunbar

Isso não se explica apenas pelo talento e experiência do jovem havaiano, mas sim por um conjunto de fatores que o diferencia neste início de temporada. A chegada à Australia quase um mês antes do Quik Pro para testar seus modelos de prancha, a recém parceria com Ross Williams, que realmente não foi um grande competidor mas é dono de uma inteligência acima da média para os padrões do Tour e a confiança em alta, já demonstrada no Volcom Pro, em Pipe, quando apesar de ser parado nas semis (em ondas manobráveis para o Backdoor), mostrou um surf de muita potência e solidez. Tenho uma “maluca” absoluta certeza de que se ele não tivesse sido mal julgado na semi de Snapper contra Wilko, ele estaria agora com duas vitórias e um caminhão de pontos na frente do segundo colocado no ranking. Em seu melhor começo de temporada, JJF sobra na turma e tem outra etapa em seguida onde pode estender seu domínio, ainda mais se as ondas estiverem acima dos 6 pés, onde cá para nós, ele é barbada.

Pra finalizar, Filipe Toledo surpreendeu positivamente e apagou, ao menos pra mim, a péssima estréia na Gold Coast. Sem medo de atacar as bombas do West Australia, o filho de Ricardinho surfou muito bem e podia ter feito a final se tivesse um pouquinho mais de sorte no duelo contra Kolohe Andino. O garoto vai longe, basta apenas encontrar seu ritmo e continuar a evolução.

Filipe Toledo calou os críticos, surfando muito bem em ondas grandes e volumosas. Foto: WSL/ Matt Dunbar

Filipe Toledo calou os críticos, surfando muito bem em ondas grandes e volumosas. Foto: WSL/ Matt Dunbar

De olho em Bell’s, é bom a turma começar a caça ao simpático lourinho, pois do jeito que as coisas estão indo, tá arriscado não ter nem segundo semestre. Pra quem achava que 2017 seria um dos anos mais equilibrados do Circuito, o que de fato acontece é a supremacia de um único surfista, que nem é em baterias, mas até o momento em performance. John John está Hors Concours!

 

Gold Coast e suas bolas pretas e brancas

E começou o Circuito Mundial de Surf Profissional. O palco de estréia foi a cidade de Coolangatta, no Gold Coast australiana, no famoso Superbanks, enorme bancada de areia que linka Snapper Rocks, Rainbow Bay e Greenmount. Muito foi dito e escrito sobre a abertura da WSL mas não posso deixar de dar meus pitacos no que gostei e detestei neste evento, que para mim, é um dos mais bacanas de todo o tour.

Vamos as bolas brancas.

As ondas

Há muito tempo que não rolavam ondas tão boas neste início de Circuito. O evento rolou quase que direto, com os homens e mulheres, e apesar do vento atrapalhar um pouco, principalmente nos dois últimos dias, tiveram horas em que era impossível o mar estar mais perfeito. Com a pista ideal, o que se viu foram performances de alto nível, inclusive dos goofies, que sempre tinham dificuldade em surfar estas ondas rápidas, ocas e de difícil leitura.

Backside ataque

É inegável que alguns surfistas se sobressaíram com suas pontadas verticais nas direitas de Snapper. Para mim, a velocidade de Ítalo Ferreira, a precisão de Owen Wright e a força de Gabriel Medina foram os destaques. Connor O’Leary e Matt Wilkinson, surfaram bem, mas não variaram nada, passando baterias muito mais por um anticritério de julgamento do que por realmente estarem arrepiando.

Gabriel Medina mostrou um forte ataque de backside. Foto :WSL

Gabriel Medina mostrou um forte ataque de backside. Foto :WSL

O retorno de Owen

O australiano parece ser um cara gente fina. Seu drama no final de 2015, em Pipeline, e a complicada recuperação ano passado, encheram os olhos de todos com muitas lágrimas. A fé, paciência e claro, o enorme talento, foram os motivos de Owen mostrar tanto surf, mesmo muitos quilos abaixo de seu peso no seu comeback. Surfou bem, mas não o suficiente, na minha opinião, para vencer um evento tão equilibrado. Ficou para mim, a partir do Round 3, a intuição que ele venceria de qualquer forma…

Depois de um ano parado por uma contusão, Owen Wright voltou com tudo para o tour. Foto: WSL

Depois de um ano parado por uma contusão, Owen Wright voltou com tudo para o tour. Foto: WSL

Parko e Slater

Sim, eles estão mais velhos (Slater então…), com manobras mais modestas, porém quando vem a boa… Tanto Parko quanto Kelly poderiam ter vencido o campeonato. Joel porque além de conhecer como poucos aquela onda, tem um surf que se encaixa como uma luva nas condições locais, com muitos carves fortes e pancadas no lip. Já Kelly, estava bem veloz e com mais pressão do que antes. Parece estar dominando melhor seu equipamento. A concentração e vontade com que disputou sua bateria contra Medina, quase vencendo, mostram o quanto ele quer seu 12º título mundial. Num evento onde era considerado azarão, nada mal um 5º lugar. Lembrando que temos agora as bombas de Margaret River, as pesadas direitas de Bell’s e ainda Fiji, Teahupoo e Pipe. Se derem mole pro careca…

Mesmo com 35 anos, Joel Parkinson continua arrepiando. Foto: WSL

Mesmo com 35 anos, Joel Parkinson continua arrepiando. Foto: WSL

Medina, JJF e “Happy” Gilmore

Estes três personagens foram os protagonistas do Quiksilver Pro e Roxy Pro. Medina foi o melhor surfista do evento até o vento atrapalhar as condições do mar. Não deve ter tido uma lesão muito séria, pois surfou muito bem, provavelmente a base de analgésicos, mas quando o mar ficou mexido, visivelmente teve dificuldade. Seu ataque ao lip de costas para as ondas me lembrou Occy, o Destruidor, em 2002, quando estive pela primeira vez no pico. Medina melhorou muito seu backside, que eu mesmo tanto critiquei. E isso pode ser o diferencial num segundo título mundial. John John está confiante. Foi quase perfeito em todas as baterias, escolhendo a dedo suas ondas e surfando como um verdadeiro campeão mundial. Teve o repertório mais completo, melhorou seu estilo e cometeu um único erro, nas semis, quando caiu numa onda que certamente seria high score e não daria margem para a trapalhada dos juízes em sua derrota para Wilkinson. Para quem pensava que o havaiano iria ficar satisfeito com seu caneco, pode tirar o cavalinho da chuva, pois Florence está mais focado que em 2016. Por último, não dá para esquecer o que Stephanie Gilmore fez na sua bateria nas quartas-de-final. As três pancadas no outside de sua quarta onda seriam nota 10 em qualquer categoria. Acho que foi um dos 10 mais fáceis já dados na história das competicões. Esta mulher não surfa como homem, e sim como uma grandíssima hexacampeã mundial.

Stephanie Gilmore não deu chance para as adversárias, conquistando mais um título em sua vitoriosa carreira. Foto : WSL

Stephanie Gilmore não deu chance para as adversárias, conquistando mais um título em sua vitoriosa carreira. Foto : WSL

 

Agora, as bolas pretas.

Filipe Toledo

Que Filipinho é um monstro no surf todos sabem, mas até por ser isso tudo, sua derrota no Round 2 foi supreendente, ainda mais perdendo para um surfista limitado como Ezequiel Lau. Favoritaço em todas as apostas, Toledo teve as boas ondas a seu favor, estrutura mas faltou talvez um pouco mais de horas no crowd ou quem sabe, sorte. Se esta prematura derrota doeu em mim (ainda mais pelo meu Fantasy), imagine nele! Fiquei decepcionado.

Filipe Toledo era considerado o maior favorito para a etapa de Snapper, mas foi eliminado no round 2. Foto: WSL

Filipe Toledo era considerado o maior favorito para a etapa de Snapper, mas foi eliminado no round 2. Foto: WSL

As entrevistas pós baterias

Sei que a WSL é uma entidade privada, que cerceia um pouco as informações negativas sobre seu produto, mas estas entrevistas sem graça após as baterias são um pé no saco. Porra, vamos botar bons jornalistas ou então alguém mais preparado para criar perguntas mais interessantes. Ninguém aguenta mais saber como foi a bateria, como foi aquela manobra ou onda. Queremos saber o que o derrotado achou de julgamento, se sentiu-se prejudicado, qual a estratégia dos vencedores, o que eles acham das condicões do mar, se concordam com o comissário Kieren Perrow… Enfim, sei que isso não vai rolar mas tá na hora de apimentar um pouco as coisas, pois basta ter pouco surf em 30 minutos. Quando nego sai da água ainda vem perguntas e respostas tipo “chove não molha”… Chato pra cacete!!! Exceção para a reunião entre Slater e Medina aguardando as notas que definiriam a vitória do brasileiro. Isso sim é informação!

A Escolinha do Professor Porta

E quando você acha que já viu tudo de ruim no julgamento eis que surge o Professor Porta e seus alunos. Na boa, não sei para que mostram aquele gráfico bacana nas transmissões com os 5 mandamentos do critério de julgamento: Tu variarás as manobras, Tu terás comprometimento, fluidez, força, velocidade, Tu farás manobras mirabolantes… E Matt Wilkinson e Owen Wright chegam à final. Se existe um anticristo dos mandamentos do julgamento este chama-se WILKINSON. Ele não varia manobra alguma, não tem força nem velocidade e a fluidez em seu vocabulário só serve na hora de urinar seu fluido vindo da bexiga. Owen é quem mais bate reto usando a borda, mas pesando uns 5 a 8 quilos a menos parecia um frangote em engorda, soltando pouca água comparado ao Medina por exemplo, e variando menos ainda que seu colega Matt. A bateria entre John John e Wilko, nas semis, tinha que servir de lição de casa para todos os juízes do planeta, mostrando como não se deve julgar. Comparar a nota 6 de JJF com o mítico 8,07 que fez o australiano vencer a semi, beirou a loucura. Creio que se deveria pensar seriamente em pegar os alunos (juízes) e o teacher (head), trancá-los numa sala escura, apenas com monitores, sem áudio, e inibir a ação externa de locutor, público, competidores e até dos próprios “árbitros”. Talves assim eles consigam julgar apenas aquilo que veem e não usem os outros sentidos. Com tanto a ganhar e perder, está na hora de dar um basta a disparates como a derrota de Florence e outras polêmicas baterias, sempre por absoluta fuga dos próprios critérios definidos por eles mesmos. Fica difícil até saber se é burrice, incompetência ou má vontade. Ou quem sabe tudo isso e mais? Pra quem acha que os brasileiros são perseguidos, tá aí uma prova que a incapacidade é pra todos.

 

 

 

O Maraca é nosso!

14992049_1083649538419779_4177270835174593250_n

Hoje, terça-feira, 8 de novembro, amanheceu lindo, ao menos da minha varanda. Céu azul com algumas nuvens que tornavam a vista ainda mais bela. Porém, a cerca de 100 km ao norte, falecia Rossini Maranhão Filho, o Maraca, um menino do Rio, ou melhor, de Saquá, mesmo nascendo no Pará. Ele era publicitário, pai de Rocco, companheiro de Heloísa, surfista e amante das ondas, praias, amigos, da sua Itaúna.

Conheci o Maraca aos vinte e poucos anos, na redação do saudoso jornal Now, em Ipanema. Foi ali também, num ap de saleta e quarto que passei a fase mais divertida de minha vida profissional. Eu era um jovem tolo, como quase todos. Arrogante, querendo mostrar serviço, sem a menor consciência da responsabilidade que as palavras escritas tem na sociedade. Com esta estupidez jovial, lembro bem de que ao conhecer aquele “coroa”, de cabelos longos, grisalhos, falando como um hippie, menosprezei todo o passado que vinha atrás daquele importante personagem do esporte que eu tanto amava.

Maraca me deu aula de humildade e foi apenas com o tempo que comecei a entender o quão importante é a história e seus fatos, princípios básicos do jornalismo. Aprendi que temos que respeitar nossos heróis e mesmo sem saber, ele foi responsável por um dos maiores ensinamentos que tive na vida.

Maraca foi um dos primeiros e maiores big riders do Brasil. Um dos pioneiros brazucas no Hawaii. Ganhou o respeito de Eddie Aikau, ficou amigo do irmão Clyde e continuou, há quase 40 anos, a viver do surf, mesmo que de outra forma. Sua geração, com Penho, Rico, Otávio Pacheco e seus irmãos Fábio e Mauro, além de tantos outros, foram os meninos de ouro do surf nacional nos anos 60 e 70.

Mesmo com os problemas do cotidiano, seu sorriso sempre estava ali, principalmente quando lembrava de seus “causos” dignos de constar em qualquer livro sobre o surf no mundo. Sua paixão por Saquarema foi tamanha que resolveu morar lá. E foi lá que nos deixou.

Triste vê-lo partir ainda cedo, de forma abrupta, muito por culpa do fracasso da saúde pública de nosso país.

Queria deixar aqui, em nome do blog e de Marcelo Andrade, meus sentimentos a toda a família e amigos do mestre Maraca. E principalmente a Rocco, um bom amigo, companheiro de tantas viagens, alegrias e tristezas, que herdou a generosidade e simpatia do pai.

Uma dica: ano que vem, se conseguirem fazer a etapa da WSL em Saquarema (sinceramente não levo muita fé se dependerem do Governo do Rio), prestem a devida homenagem a este cidadão que tanto amou esta cidade e o surf brasileiro.

Vai descansar em paz grande Maraca, herói meu, seu, nosso.

 

A grande lição do menino havaiano

A primeira vez que vi John John Florence foi em 2000. Eu estava numa casa alugada pela revista Fluir, em frente a Off The Wall (que para quem não sabe, é colado ao Backdoor) e pela varanda dava pra ter uma visão incrível de Pipeline e arredores. Era bem cedo, o mar tava qualhado de bodyboarders disputando as cracas de 8 a 10 pés que quebravam na bancada mais famosa do planeta.

Nesta maravilhosa varanda, tinha um grande binóculo de guerra, que ficava preso numa haste possibilitando dar um close mais de perto na galera surfando. E foi numa destas olhadas que notei um cotoco de gente, de cabeca amarelo ovo, com uma prancha rosa e roupa de borracha, no inside de Pipe, tentando dropar o que sobrasse.

Já tinha visto fotos e imagens do filho mais velho da família Florence, capitaneada pela supermãe Alexandra, que criou John John e seus dois irmãos Nathan e Ivan, sem a ajuda do pai, John. Fiquei tão impressionado, que desci a escada e fui pelas sagradas areias do North Shore ver de perto aquela bizarrice.

Ele estava com 8 anos e sua intimidade com aquelas condições me deixou estupefato. Ele não parecia ter medo, aquilo era seu playground. Me lembro que depois, no almoço, virei para o fotógrafo Sebastian Rojas e comentei: “esse garoto vai ser um dos melhores surfistas do mundo certo!” Pois neste 25 de outubro, 16 anos depois, JJF sagra-se o quarto campeão mundial de origem havaiana.

johnjohn-garoto

Ando lendo muito besteira pelas redes sociais, a maioria de gente que não tem a menor idéia do que seja o Circuito Mundial de verdade. Inclusive de jornalistas ufanistas, que tendem a aumentar as diversas fantasias e lendas urbanas, desmerecendo qualquer outro surfista que não seja brasileiro. A que ponto chegamos! Nós, que sempre criticamos os estrangeiros pela empáfia, agora não aceitamos nada menor do que o número 1.

Esquecem que o primeiro título mundial de Gabriel Medina teve uma vitória contestada no mundo inteiro, exceto é claro aqui, quando derrotou Joel Parkinson numa final pra lá de duvidosa na abertura do Tour, em 2014, pontos que acabaram lhe dando o caneco. Esquecem que ano passado em Pipe, na semifinal contra Mick Fanning, este disputando cabeça a cabeça o título com Adriano de Souza, ele recebeu uma nota extremamente alta para as condicões (seis e alguma coisa) depois de dar um aéreo comum e não conseguir aterrisar com perfeição, ficando um bom tempo deitado na espuma e surgindo com sua famosa comemoração, pedindo nota para os juízes. Fanning perdeu injustamente, no meu modo de ver, e teve alijada a chance de disputar com Adriano a coroa do surf profissional.

Sempre ocorreram erros no julgamento. E para todos. Slater, Irons, Occy, Curren, Potter, Carroll alguns dos maiores, já foram ajudados ou prejudicados em certo momento. Pelo simples fato de que nunca conseguiram adotar um critério consistente em torno das notas. Talvez porque cada um tenha sua própria opinião. Talvez porque as pessoas não sejam competentes. Talvez porque o head judge seja fraco. Mas nunca porque os resultados são manipulados. Acompanho o Circuito Mundial desde 1982, quando vi pela primeira vez o Waimea 5000 no Arpoador. Desde então criei uma paixão e após viajar por boa parte do mundo assitindo os Top, posso dizer que erros acontecem, mas escolher um campeão é forçar a barra nas desculpas.

Sou brasileiro mas não sou fanático. Sou um jornalista especializado sério e imparcial. Gosto da qualidade, não importa de que país, cor, língua ou idade. Sempre preferi o talento, seja de quem for. O importante para mim é a qualidade e caráter. Vencer a qualquer custo não consta no meu rol de afinidades. Gabriel Medina foi prejudicado em Trestles sim, mas vacilou onde sempre foi bem, na Europa. E este papo de que ficou desconcentrado depois da “roubada” não cola. Um campeão mundial tem que ter mente de ferro e o paulista já mostrou isso uma centena de vezes desde que apareceu devastando seus ídolos com seu surf altamente competitivo e suas performances aterradoras. Apenas não era a sua hora novamente.

florence

Por isso, ao ler diversos “torcedores” dizerem que John John Florence tem um título manchado, me faz pensar na lição de humildade que este garoto nos dá diariamente. Sem pai presente, educadíssimo, sustentando sua família desde muito pequeno, sempre tratou as pessoas de forma igual, tendo inclusive entre seus melhores amigos um brasileiro (Kiron Jabour). Com contratos milionários desde cedo, poderia ter a empáfia de Slater e Irons, mas não, sempre está sorrindo e sendo amável. Surfa qualquer coisa e querendo ou não é o cara mais completo da atualidade, não por ser havaiano, mas sim por ser abençoado com o dom de surfar.

Dois brasileiros conseguiram títulos mundiais porque suas gerações foram humildes em aprender a surfar ondas de verdade, formando atletas fora das drogas, tendo seus pais, “padrinhos” e padrastos os guiando ao topo do mundo, mostrando que o Brasil já tem uma geração de filhos de surfistas. Se quisermos o respeito de todos, precisamos aprender a respeitar. Gabriel, Felipe, Adriano e também Jordy, Wilko, Julian, Kelly, enfim, todos eles tiveram suas chances e falharam. Florence venceu antecipado, com direito a uma supremacia em ondas pesadas e difíceis que o colocaram em outro nível, daí a facilidade na conquista.

Temos de aplaudir este magnífico garoto, que perguntado se achava-se o melhor surfista do mundo, disse, com toda sua cara tímida: “que não se achava o melhor, que era apenas mais um surfista diferente, assim como os outros companheiros de Tour.” Tenho absoluta certeza de que falou de coração. Ano que vem, todos terão nova chance, mas agora, é tempo de aplaudir este jovem fenômeno, que não precisa de ajuda de ninguém para fazer o que faz desde pequenino: nos encantar com sua magia e alma pura de um apaixonado pelo mar. Parabéns John John!

the-champ

 

ROUBALHEIRA!!!!

Todos sabem que sou um dos poucos jornalistas brasileiros que evita o termo “roubar” quando se fala no polêmico assunto julgamento nas etapas da WSL. Mas depois de assistir a nota dada pelos paralímpicos juízes “cegos” do palanque montado em Trestles, Califórnia, na bateria do Round 3 entre Gabriel Medina e Tanner Gudauskas fica impossível defender qualquer head judge, juiz, dirigente ou quem estiver envolvivo e não achar que foi uma das maiores roubalheiras já vista no surf profissional.

O título de campeão mundial de Gabriel Medina foi fundamental para a retomada do crescimento do surf nacional. Foto: WSL

Gabriel foi garfado em Trestles sem piedade.

A comparação entre dois rivais, de backside, é muito fácil para qualquer leigo. Ainda mais em ondas boas e longas como esta direita de San Clemente. Não tem como duvidar que a onda onde Gabriel recebeu a mísera nota 8,30 foi disparada a melhor da bateria. Manobras fortes, muita água pra fora (o que caracteriza a prancha indo no lugar mais crítico da onda), aproveitamento até o final, enfim a onda surfada pelo brasileiro merecia ao menos um 9, o que seria mais do que necessário (precisava de 8,34) para virar a bateria e ficar em ótima posição para avançar de fase e ter a chance de ultrapassar John John Florence na liderança do ranking.

Não acredito em mau julgamento desta vez. Não tem como cinco caras e um chefe de juízes serem tão incompetentes assim. Um exemplo desta bizarrice foram os próprios comentários de Barton Lynch, campeão mundial de 1988, não entendendo a nota fora do padrão excelente.

Não acredito em complô para que JJF sagra-se campeão, até porque também achei que as notas 4 dadas à ele, contra Brett Simpson, underscored, mas depois dessa descompensada no julgamento (inclusive prejudicando Matt Wilkinson) fica complicado até debater isso. Não sei quem vai levar o evento, mas que Jordy Smith, Kelly Slater e principalmente Felipe Toledo adoraram a saída dos maiores favoritos ao título de 2016, isso é inegável.

No mais, reciclagem para todos no palanque da WSL, pois desse jeito até a CBF vai se sentir ofendida pela total incapacidade de fazer um bom trabalho.

Palmas, de pé, para ele!

Depois de duas semanas de momentos inesquecíveis durante a Rio 2016, quando eu pensava que nada mais me faria empolgar diante da TV, eis que ressurge das cinzas, Robert Kelly Slater, aos 44 anos, tendo uma das performances mais perfeitas da história do surf competitivo num dia final de evento. Foram quatro baterias, 77,34 pontos em 80 possíveis, o que dá uma média de 19,335 por bateria ou duas notas 9,66 por disputa. Não me lembro de algum surfista ter números destes no último dia de uma etapa do Circuito Mundial.

O que Slater fez em cima de sua prancha triquilha cheia de envergadura (que mostrou-se ideal para os drops rápidos, estoladas e controle no foam ball) foi uma das maiores performances que tive o privilégio de assistir. E dessa vez, na minha TV de led, no escurinho, em casa, coisa de cinema.

Sei que estamos diante de uma mais que provável disputa entre os dois melhores surfistas do planeta atualmente – Gabriel Medina e John John Florence – pelo título mundial da temporada. Mas a cada saída mágica de algum tubo, Kelly simplesmente me fez esquecer o ranking e me lembrar da qualidade, da genialidade, do prazer de apreciar gente como Michael Jordan, Pelé, Federer, Phelps, Bolt… Não soa exagero, mas Slater, para mim, está no mesmo patamar deste caras, com um adendo, nenhum destes citados acima manteve o nível apurado durante mais de 25 anos.

O maior nome do surf mundial deu show em Teahupoo.

O maior nome do surf mundial deu show em Teahupoo. Foto: WSL – Cestari

Penso que o universo conspira a favor de certas pessoas. E tanta harmonia. aliada ao mínimo detalhe dentro de uma onda, tornaram Kelly hoje (quando escrevo) numa obra prima da natureza, parte do mar, como se fosse um golfinho pulando e mergulhando em sua dança frenética e linda, sabendo que toda aquela movimentação e energia quebrando numa bancada rasa de coral a 1500 metros da costa fosse um palco preparado para o maior espetáculo da Terra. Kelly não é bailarino, mas ele dançou nas ondas de forma tão perfeita que até uma sereia seria capaz de jurar que ele mora lá.

Por alguns momentos, deveríamos deixar de falar sobre juízes e suas opiniões, de garfos, rodeios ou assaltos. Vamos dar destaque a perfeição “Do Surfista”, no seu segundo habitat, o mar. A vitória no Tahiti deu um pouco mais de emoção e quem sabe o toque final, demonstrado pelo choro copioso de Slater, como uma criança, na premiação. Se fossem outros tempos, talvez a cara arrogante estaria ali. Mas não agora. O maduro Freak, ET ou seja lá como você o define, voltou a ser de carne e osso, apesar de vestir a lycra dos deuses.

Abençoados somos nós, que podemos ver, ao vivo e a cores, a genialidade de um mito. Desculpem-me Medina e John John, mas hoje os louros reaparecem na cabeça lisa e oval dele. A coroa é velha, mas tem dono. Aos outros restam admirá-lo e quem sabe aprender: A saber ganhar, a se motivar, a surfar. A nós, cabe agradecer por fazer parte de uma geração que viveu na mesma época. Daqui há 20 anos, certamente vou poder dizer: “Eu vi Kelly Slater!”

Quatro notas 10 e várias notas próximas desse patamar. Um verdadeiro ET. Foto: WSL - Cestari

Quatro notas 10 e várias notas próximas desse patamar. Um verdadeiro ET. Foto: WSL – Cestari

Do sertão para Tóquio

Estava há bastante tempo preparando este texto, afinal de contas, para mim é um assunto importante e precisa ser debatido com equilíbrio. Mas uma série de depoimentos num post criado por Roberto Perdigão concluiu meu raciocínio. Vamos em partes.

Há alguns dias, o COI (Comitê Olímpico Internacional) informou que o surf, dentre outros esportes, faria parte do programa dos Jogos de Tóquio, em 2020. Ao meu ver, uma decisão atrasada, pelo menos 4 anos, pois com as excelentes ondas que quebraram no Rio durante nossa Olimpíada a disputa por medalhas em águas cariocas seria sensacional.

Sempre rolou muita discussão sobre o surf entrar para os Jogos Olímpicos, só que uma vez definido, pouco li ou escutei sobre o assunto. Muita gente acha que o crowd vai aumentar, outros que daria um novo boom no mercado, mas na verdade é que, ao menos no Brasil, do jeito que as coisas vão, nada parece que vai mudar.

Sou contra o formato escolhido pelo Brasil para fomentar o esporte em geral. Temos inúmeros exemplos mundo afora, em particular nos Estados Unidos, onde o esporte anda junto da educação, num modelo que forma mentes capacitadas e grandes campeões. Alguns países, como a Rússia e China, preferem usar o esporte como propaganda política e, ao que parece, inclusive se utilizaram de doping para mascarar performances.

Por aqui, nem isso estamos fazendo. Um trabalho tímido revela alguns talentos, mas a realidade é que os atletas brasileiros dependem basicamente de suas famílias e de uma gigantesca determinação para conseguirem vencer. E isso até certo momento, pois depois, relegados ao ostracismo, muitos (os que não vencem) sucumbem à falta de preparo e educação, vivendo na miséria e esquecidos no tempo, sempre cruel.

O surf brasileiro atual, vive uma crise de identidade grave, que aflige todos os setores, desde os clubes de surf ou associações até o próprio mercado de surfwear, baleado pela crise econômica. Não ache que por termos os dois últimos campeões mundiais profissionais somos ouro em organização e administração. Ao contrário, estamos divididos em duas regiões, a Norte e Sul, numa briga que só nos leva ao buraco.

A CBS (Confederação Brasileira de Surf) simplesmente não consegue unir o país. E para, em 4 anos, formarmos uma equipe para o Japão, é necessário muito trabalho em conjunto e harmonia, o que é impossível atualmente. Acho que esta oportunidade deveria ser aproveitada para organizar nossa base e tentar, neste curto espaço de tempo, colher algum fruto nem que seja apenas para ter o Circuito Brasileiro novamente. Sei que é muito mais fácil chamar o Medina, o Toledo ou o Mineiro para disputarem no Japão. Mas do que isso nos ajudaria concretamente além de uma chance maior de ganhar simples medalhas?

Gabriel Medina entrando no clima olímpico.

Gabriel Medina entrando no clima olímpico.

O Brasil, através de cabeças bem intencionadas e com profundo amor ao esporte, foi um exemplo de formação de atletas e seres humanos durante muitos anos. Poderia ficar aqui até amanhã escrevendo os nomes de diversos surfistas que se tornaram pessoas de bem devido ao preparo que tiveram durante sua adolescência, viajando e conhecendo novos horizontes, com disciplina e responsabilidade. Mas parece que nenhum deles herdou o dom ou a vontade de se tornar um dirigente (que no fundo são políticos), palavra tão esculhambada para grande parte do nosso povo, mas que é fundamental para que as engrenagens funcionem e a máquina possa produzir Gouveias e Padaratz aos montes.

Equipe brasileira no ISA Games de 2011. Foto: ISA/ Divulgação

Equipe brasileira no ISA Games de 2011. Foto: ISA/ Divulgação

Chegamos a um impasse, onde é necessário sangue novo cercado de experiência. Não dá para olhar mais para as figuras de sempre dirigindo o nosso esporte. Todos são bemvindos, mas como conselheiros e não como líderes. E também chega deste papo de surf amador. Isso é balela. Quem trabalha tem que ser muito bem remunerado e com transparência. Um salário fixo ou bônus por produção são fundamentais para que alguém tenha a motivação de se jogar de corpo e alma neste desafio. Que se contrate um CEO. Que a diretoria fiscalize. Que os conselheiros fiscalizem. Que os atletas participem de tudo e não apenas na hora de vestir uma lycra. Tá na hora de se sentarem e conversarem para chegar a algum lugar. Que se engulam os egos, a inveja, a cobiça. Vamos pensar num bem maior.

Aposto que os EUA e Austrália, dominados por nós há algum tempo, vão se organizar e tentar retomar a hegemonia que perderam no Tour. E não se engane, isso começa na base, nos bairros, praias, clubes com garotos e garotas de pouca idade. Hoje temos alguns fenômenos, mas assim como no futebol, em algum momento a fábrica para e ficaremos pra trás.

O surf pode crescer muito com a inclusão nos jogos olímpicos. Foto: ISA/Divulgação

O surf pode crescer muito com a inclusão nos jogos olímpicos. Foto: ISA/Divulgação

Não interessa se o futuro vem do Oiapoque ou Chuí. O que importa é que nossos filhos consigam reviver aquilo que eu vivi quando era moleque. Uma aura de competição que me deu amigos de uma vida. E concordo com Perdigão numa coisa: o diálogo sempre é fundamental, mas a falta de ação é mortal. Não podemos pecar pela intransigência, nem pela falta de atos. Que todos sejam sábios e consigamos retomar o rumo.

Que tal?

Em Fiji, Medina deu aula de competicão, Slater de conhecimento e técnica para entubar, Taj de como se deve encarar a aposentadoria, mas o que ficou na minha cabeça nestas duas semanas foi como o episódio de estréia do “80 e Tal”, exibido no último dia 14 de junho e que irá passar às terças no canal Off, mexeram com os sentimentos dos quarentões, cinquentões e até sessentões que viveram dias de ouro nos anos 80. Éramos felizes e sabíamos!

Rafael Mellin nasceu naquela década mas com sua sensibilidade e ajuda de quem viveu intensamente aqueles anos, montou uma série de 13 episódios que contará muitas histórias divertidas e saudosas de gente que cimentou de vez a base do surf brasileiro. É óbvio que muita coisa boa e pessoas importantes ficaram de fora pois é impossível colocar todos. E que me desculpem os egocêntricos, o inportante aqui não é quem está na telinha, mas as lembranças representadas por uma grande turma que desfilou pelas praias país afora sonhando em viver do surf e para o surf.

As mensagens das meninas, agoras mães, dos gatões, alguns avôs, todos se referindo a uma época inesquecível, de muitas descobertas e aprendizado, me emocionou profundamente, me fazendo sonhar de novo com as viagens para a praia da Joaquina, palco principal do surf nacional naquela época. Também das esquerdas da Guarda e das direitas da Silveira com pouca gente (comparado a hoje) e muita estrada de barro. Das idas para Maracaípe e Stella Maris, com a galera sempre divertida e acolhedora do Nordeste. Das horas sem fim de surf no Meio da Barra recortado de valas, com minha CG e meus amigos farofados nas areias brancas ou batendo um rango no trailer Pureza.

Sinto saudade da rivalidade entre a Cristal Graffite, Hotstick e Hidrojets no Rio. Da idolatria pelo Cauli. De ver de perto o surgimento do fenômeno Dadá. Dos sábados com o Realce. Das gatinhas da Zona Sul. Da empatia com a turma de Nikiti (Dodô, Porquinho, Gilmar, Tatuí, Dico, Duca…). Dos foguetes do Beto, dos papos com Roberto (Valério), das risadas com Fedelho, Guto e Casquinha, da amizade pueril com Dudu e Guga. De Ubatuba. Guarujá. De descobrir o que eu queria fazer da vida ao conhecer Fafau e ele me fazer escrever meu primeiro texto pro jornal Staff.

Lembro de viajar de avião sem meus pais, da primeira trip de carro, de ter fã clube, de descobrir que em São Paulo tinha muita gente boa como a galera da Ripwave: Renan, Chulé, Pen, Zé Paulo. Das zoações no Joaquina Beach com Duca e Beto Cavalero. Das gaúchas, lindas de morrer. De passar o mês de julho em Garopaba num frio do cão. Do Mistura Fina na Barra, do Adrenalina do Xu. Dos tubos do Postinho. De ver o Brasa, Valdir e o Zulu destruindo no Quebra Mar. De apreciar meu camarada Xandinho desafiando as cracas no seu bodyboard. De ter conhecido Stephany, Mariana, Belinha, Tatiana e Glenda, as verdadeiras sereias dos sete mares.

Nunca vou esquecer do que assisti no Waimea 5000, com Fred X Cauli num Arpoador de gala. Nem de ver o Picuruta na Barra, com roupa de borracha verde e laranja surfando que nem gringo (nesses tempos isso era um baita elogio). De apreciar os estilos de Muga, Teté e Betinho Maluco na valinha do 3100 ou escutar o mestre Meco sobre a arte de esperar a onda certa. De ter meu walkman e escutar sem parar U2, Iron Maiden, INXS, The Cure e Fleetwood Mac. De ir morar no Barramares e conhecer as pessoas que fazem parte de cada pedaço de minha alma, com risos e lágrimas, típicas de uma grande família.

Os anos 80 foram coloridos, criativos, desbravadores. Foi quando vi Free Ride. Quando tive meu calcão Sundek original. Quando tive minha primeira prancha (uma Dick Brewer 5’7″). Quando encomendei minha primeira triquilha com o Roberto Bataglin, irmão do Pedro. Quando tive minha primeira CG a preço de custo. Quando ganhei do meu pai o primeiro colete de neoprene da O’Neill. Quando a menina que fazia a inscrição do Circuito Company/Cyclone ficou com preguiça de escrever meu nome e botou Alex Guaraná, o que acabou virando meu nome de guerra no surf e no jornalismo (eu odiava que me chamassem de Alex).

Recordo também de ficar boquiaberto ao ver Teco surfando e mais ainda ao descobrir que Neco, um pingo de gente, podia ser melhor. De ver Dedé e Jesus crescerem e se tornarem grandes caras. De ver Léo Trigo, Cadu e Marcelus arrepiarem com as pranchas do Pastor. De não acreditar nas ressacas que Rodrigo (Resende) se metia surfando morras impensáveis com apenas 17 anos. De usar os calções Flake dos Marcelos Burla e Magrão (este com papai do céu). De conhecer Wanderley Carbone, um gênio das artes e Marcelo Andrade, um dos meus maiores amigos. Tantas memórias…

O que é a vida sem olhar as páginas viradas? Somos o somatório delas e cada uma tem suma importância em quem você é. Lembrar de ontem é compreender o hoje.

Obrigado “Kid” Rafa pela busca do passado, importante na história de qualquer sociedade.

 

 

 

Morte anunciada

Já rolavam uns boatos, mas a notícia em primeira mão foi dada pelo Marcelo (Andrade), aqui no Surf 100 Comentários. Depois de 32 anos e alguns meses, a FLUIR deixará de circular.

Sou da geração que viu a Visual Esportivo nascer, para tomar o lugar da Brasil Surf. E que viu a versão paulista da Visual, a FLUIR, engolir a carioca por ter uma gestão mais profissional.

Comprei a edição número 1 da Fluir, que era fina, mal feita, com muitas fotos em P&B, porém tinha algo de novo. Sua evolução foi rápida e já na sexta edição, veio potente com excelentes matérias. Na verdade, não sei se eram tão boas, mas certamente, para quem tinha pouca idade, era uma miragem em meio a um deserto de informações sobre o surf no Brasil.

Capa da primeira Revista Fluir.

Capa da primeira Revista Fluir.

Passaram-se anos, e a gestão mais profissional mostrou-se não tão profissional, meio que quebrando e sendo vendida para um conhecido empresário do ramo editorial, Ângelo Rossi, que tinha criado a Editora Azul, que algum tempo depois se tornaria um braço da Editora Abril, maior grupo editorial da América do Sul durante décadas.

Numa empresa de porte, com pessoas mais acostumadas a um padrão de excelência, a FLUIR teve uma evolução, embora ficasse meio “quadrada” em termos editoriais. Diria que tecnicamente evoluiu mas editorialmente ficou careta.

Uma vez na Abril, a revista ficou ainda mais industrial, mas com a direção de Felipe Zobaran, manteve um linha bacana e informativa, com conteúdo próprio mas limitada a um projeto gráfico da casa.

Diria que a grande virada da revista foi em 1999, quando Rossi, um dos fundadores da Abril, resolveu criar outra editora, a Peixes, e levou a FLUIR, perdida entre tantos títulos na gigante editora paulista, começando um portfolio jovem e interessante. A sede na Rua Helena, no Itaim, foi crescendo e logo o 4o andar se tornou pequeno. Mais 3 andares do prédio foram ocupados e 10 selos criaram a 5a maior editora do país.

Sob gestão de Adrian Kojin, um eterno freesurfer de alma e excepcional jornalista, a FLUIR foi criando asas e entrando numa metamorfose que viria a ser referência no mercado jovem brasileiro.

Entrei no time em 2000, ocupando o cargo de editor. Foi um desafio para mim sair da tranquilidade de morar em frente a praia e surfar todo dia e encarar um ap em Campo Belo, ao lado do meu amigo Felipe Silveira, hoje CEO da Rip Curl. Dividimos o aluguel durante 3 anos, onde as discussões e bate papos foram importantes na minha maturação na relação editor X marca de surf.

Felipe é um mestre do marketing e suas dicas me deram muitas idéias para consolidar a marca FLUIR fora do mercado especializado. Queríamos ser mais do que uma simples revista de surf. Queríamos ser a melhor revista jovem do Brasil. E conseguimos! Não porque eu ache isso mas sim porque fomos premiados. Era o sonho se realizando. Tudo baseado em três coisas: independência, muito trabalho e opinião.

Prêmio Fluir sempre foi considerado o Oscar do surf brasileiro. Foto : Fluir

Prêmio Fluir sempre foi considerado o Oscar do surf brasileiro. Foto : Fluir

Sempre tivemos total liberdade para exercer nosso papel de jornalistas. Nunca, nem uma vez, Ângelo Rossi se meteu em quaisquer situação polêmica. Sempre ficou ao nosso lado, o que nos dava muita segurança na forma de atuar, principalmente com o departamento comercial, que basicamente quer vender, seja da forma que for. Os embates com os responsáveis foram titânicos e não foi uma ou duas vezes que minha cabeça foi pedida, pela forma com que eu defendia, com aval do Kojin, os projetos para a revista.

Comecei a participar de reuniões com publicitários e ver que a FLUIR era sinônimo de jovem neste seleto ramo. Carro com a logo, mensagens nos celulares (para a época era a vanguarda da vanguarda), camisas, barracas, festas inesquecíveis, premiações histórias para os surfistas preferidos dos leitores… Tanta coisa, construída sem vender a alma…

Muito se fala, no mundo todo, que a internet acabou com a mídia impressa. Discordo! Assim como a TV não acabou com o rádio, a internet não vai acabar com revistas e jornais. O que acontece é uma simbiose entre ambos, onde a qualidade e interação se faz necessária, com competência obviamente. E me parece que a editora que comprou a quase falecida FLUIR da extinta Peixes, não se preocupou em fazer isso. Apostaram no site Waves, tradicional no mercado, mas que competia com a revista e sua marca, infinitamente maiores.

Aos poucos, a revista perdeu sua maior qualidade, a liberdade, e passou a flertar com o perigoso mercado, sempre querendo mandar no que não entende. Assim como um jornalista não sabe produzir uma bermuda, um empresário de surfwear não tem a menor idéia de como publicar um bom veículo de comunicação. Eles se completam sim, mas cada um no seu limite de espaço. A partir do momento que as marcas passaram a controlar o que saía nas páginas, a vaca foi pro brejo. A partir do momento que o site da FLUIR foi esquecido em prol do WAVES, a vaca foi pro brejo. Um erro de avaliação que custou caro. E pela terceira vez, a FLUIR sucumbe a má administração e falta de visão, só que dessa vez, me parece, sem um herói para resgatá-la.

Sei que Adrian (Kojin), Paulinho (Paulo Costa Jr.), Naninho (Ernani Mesquita), Waltinho (Walter Garrote), Ale (Alessandro De Toni), Lucky (Luciano Ferrero) e Steve (Steven Allain) estão como eu, muito tristes pelo fim de uma era. Nós, que vivemos os tempos de ouro da revista, que de patinho feio se tornou o carro chefe de uma grande editora nacional, sentimos que uma parte de nosso espírito some junto da FLUIR.

Torçamos para que a Hardcore, a eterna rival, continue viva e aprenda a lição de que o importante no jornalismo é buscar a informação e mais do nunca opinião bem embasada. O jovem pode estar perdido entre telinhas e telas de smartphones e tablets, mas ainda tem muita gente, quarentões como eu, que querem um algo mais, que precisam de conteúdo, que curtem sentar e folhear uma boa revista e, quem sabe, passar este hábito para seus filhos e estes para os seus netos. O papel não acabou, apenas se transformou. Jornal e revista são produtos para quem quer qualidade. E é isso que causou a morte da FLUIR. Não foi internet ou outra desculpa. Faltou ser a melhor onda!

Fluir_86_3280